Não há vestígios de correntes douradas nem cifrões de diamante. Não há boné na cabeça nem calças largas do hip hop. Em vez disso há uma T-shirt com o Peter Griffin de “Family Guy”, um AC que se arrepende do cognome Boss e que gosta tanto de fado que até já fez letras para Marco Rodrigues. Ângelo César cresceu no Cais do Sodré, na Rua de São Paulo, e quando era pequeno queria ser cientista. Segunda-feira estará à venda o quinto álbum do rapper, “AC para os amigos”, cujo single, “Sexta-Feira”, já toca nas rádios. Encontrámos o músico de papel e caneta na mão.
Anda sempre de caderno atrás, a escrever consoante as inspirações?
Sinal dos tempos, dantes realmente era isso que fazia, ainda no outro dia estava a pensar nisso. Cada vez escrevo menos com caneta. Ainda agora estava aqui com a caneta para fazer uns apontamentos e cheguei à conclusão que já nem tenho caligrafia para escrever à mão, de tanto escrever no computador. Hoje em dia com portáteis, iPads e companhia limitada, é mais prático, até pela questão de apagar, corta e cola. Há quatro anos que é quase exclusivamente por computador. Sempre que me lembro de qualquer coisa aponto no telefone, às vezes mesmo em voz. Vou coleccionando apontamentos, frases, ideias para depois completar.
Na construção das letras vai buscar esses apontamentos?
De uma maneira geral faço um esboço do que ela vai ser. Primeiro penso na ideia e estruturo-a na minha cabeça, só depois disso é que passo para a letra em si. Obviamente que há letras que saem de rajada, por inspiração. Neste álbum, agora que penso nisso, tenho pelo menos duas canções que foram feitas assim, de rajada. A “Deixou-me” e a “Laia”.
O single “Sexta-Feira (Emprego bom já)” fala dos problemas actuais de desemprego e cursos tirados para nada. Está ao lado da geração dos indignados?
Já me disseram que esta música é tipo o hino de uma geração, mas não é por aí, não foi essa a intenção. Esta música é um retrato, uma visão minha. Falo de uma personagem que é uma amálgama de várias outras personagens e as pessoas identificam-se com isso. Estamos num momento em que as coisas não estão fáceis e não podia passar ao lado disso. O que decidi era que não ia tocar na palavra crise. Já estou um bocado cansado e acho que as pessoas também. Esta foi a última canção que escrevi e acabou por ser o single. Já tinha a música e de letra só tinha o “é sexta-feira” e o “Yeaaahh”, que eu fazia na brincadeira. Mas a malta ria-se com aquilo. Peguei no computador e fui à procura de uma letra daquelas que não tinha usado e encontrei lá uma que era “O Precário” e aquilo acabou por crescer. Não queria pegar na ideia de sexta-feira e vamos para a discoteca, amanhã é dia de ressaca, não era por aí.
São os 36 anos a falar mais alto?
Estava a ver se não me lembrava disso, obrigado. Mas gosto de acreditar que estou diferente, mal de mim. Tenho essa pretensão de evoluir, seja como letrista seja como autor ou como pessoa. Nas letras faço o possível por falar de coisas que rodeiam a minha vida. Sou uma pessoa que sai pouco.
Mas foi sempre assim?
Não, eu saía muito, de segunda a segunda. Comecei a sair muito cedo e saí durante muito tempo, agora já não me diz nada. Para me tirarem de casa ou é trabalho ou é muito difícil. Prefiro jantares com amigos, em casa, ou vou ao cinema ou a um concerto. É mais por aí. Se fosse falar da discoteca e tivesse de ser verdadeiro ia falar da forma como eu vejo que é: “Nunca mais vou para casa, este cheiro a tabaco está a arder-me nos olhos e a música está muito alta.” Ia acabar a frase com um “Porra, estou velho”.
Como é que o rap surgiu na sua vida?
Foi tudo muito inocente. Em 1986 um tio meu mais velho, mas não muito, era quase como um irmão, foi fazer a recruta à base das Lajes, na ilha Terceira. Quando voltou trouxe uma cassete com rap e hip hop. Lembro-me de ouvir aquilo, de ter estranhado e pensado “mas estes gajos estão a falar, estão a cantar, o que é que é isto?”. A minha dúvida deve ter durado dez segundos porque ao fim disso estava completamente apaixonado. Depois comecei a perceber o que era aquilo e a descobrir mais coisas. Na altura não conhecia ninguém que ouvisse.
Como passa de fã para intérprete?
A primeira fase foi decorar as músicas de grupos como Sugar Hill Gang, Grand Master Flash, os precursores do hip hop. Depois comecei a fazer as minhas rimas, em inglês, que não eram mais que cópias dessas bandas. Mudava uma vírgula, mas era a mesma coisa. Posteriormente fiz a transição para português. Ainda me custava e achava que não soava bem porque não tinha referências. Já havia mais gente a ouvir e a fazer isto em português mas a gente não se conhecia, era pessoal da Margem Sul, como o General D, a malta dos Black Company. Só nos conhecemos mais à frente. Na altura era um hobby, longe de mim pensar que seria essa a minha vida.
De onde vem o Boss?
Do meu grupo de amigos. Quando éramos putos eu era uma espécie de líder. Não era o chefe mas era do género: então vamos para onde? E era eu que dizia. Era o mais organizado e chamavam-me o Boss e ficou. Se soubesse o que sei hoje…
Não tinha ficado com o nome?
Não. Boss é um nome muito forte e que induz as pessoas em erro. Nos últimos dois álbuns pensei em tirar mesmo mas já não ia a tempo. As pessoas já conheciam e depois corria o risco de ser um disparate à la Prince em “O artista anteriormente conhecido como Prince”. Mudava o nome e toda a gente continuava a chamar-me Boss na mesma. Daí o nome deste álbum. Não é Boss, é AC, para os amigos.
Estreou-se na colectânea “Rapública”, ao lado de Black Company ou General D. Hoje é dos poucos desse álbum que continuam na música. Porquê?
Sou teimoso. Acreditei quando mais ninguém acreditou. Mesmo quando acordava a pensar – e ainda hoje me acontece – o que é que eu estou aqui a fazer, será que escolhi bem, é isto mesmo que eu quero fazer da minha vida? Mais que acreditar, trabalhei para isso. O grande boom que tive na minha carreira foi com o terceiro álbum, em 2005. Cheguei a ler “a grande revelação do hip hop” quando o primeiro álbum saiu em 1998. Só existes quando as pessoas te conhecem e é ingrato.
Vive exclusivamente da música?
Esse é o meu maior feito. Quando me chamam artista essa é a minha arte: não é a música, é conseguir viver dela. Principalmente porque agora, não é que seja fácil mas é muito mais simples, já tenho uma carreira, vou para o quinto álbum, as pessoas já me conhecem. Mas quando comecei, em 97, a viver da música, trabalhava num banco, nos serviços administrativos. Tinha um emprego estável, ia ser promovido, mas não estava feliz, não era aquilo que eu queria fazer. Na altura já tinha assinado o contrato para o primeiro álbum e decidi arriscar. E desde então, 15 anos depois, continuo a viver da música. Tenho a sorte de a minha família sempre me apoiar, mais a minha avó, que foi com quem sempre vivi.
O facto de a sua mãe ser cantora [Ana Firmino] influenciou-o?
Eu achava giro, mas pensava “Isto não é vida para mim”. Não tinha a mínima pretensão de ser artista. Mas agora que olho para trás já havia alguns indícios. Lembro-me que na primária fazia as redacções a rimar. Eram aquelas rimas básicas, tipo pão com chão. Mas quando era pequeno, até digo isso na primeira música do álbum, “Gajo Normal”, queria era ser cientista. Queria ter uma empresa e ser cientista. Adorava a escola, tinha muito boas notas.
Estudou até que ano?
Teoricamente sou universitário, estou inscrito em Psicologia há oito anos e nunca lá pus os pés. Um dos planos, assim que possível, talvez aos 40 e tal, é voltar a estudar. Não Psicologia, até porque na altura também não era bem o que queria. Gosto, mas foi mais para me sentir válido. Já vivia da música e quis perceber se era capaz, só que não consegui conciliar as duas coisas e acabei por ir deixando. Mas se voltar a estudar é provável que seja numa área mais próxima do que faço agora.
Ouve muito hip hop?
Já não ouço rap nenhum, quase zero, a roçar o nada. Ouço muita, muita música e cada vez menos rap.
Porquê?
Acho muito mais interessante o rap português feito agora do que muito do que vem dos EUA. É um tipo de discurso com o qual não me identifico, aquela conversa misógina, de violência e ostentação, com não sei quantos carros e diamantes, não tem nada a ver comigo. Não dou festas na piscina para 300 modelos da “Playboy”, não tenho um Ferrari à porta e o meu relógio custou 20€ e vai lá vai. O que faz com que a minha música seja aceite, acho eu, é o facto de falar das coisas do dia-a-dia, mundanas. Esse é o caminho do hip hop português, que ainda por cima tem uma linguagem tão directa... fala da nossa realidade, do que é nosso.
E o que tem ouvido agora?
Tudo, tão depressa saio de uma casa de fado em Alfama como estou num concerto de rock mais pesado. Gosto de pensar que em tudo há qualquer coisa para aprender. Oiço toneladas de reggae, soul, jazz, no carro, coisinhas calmas como bossa nova. Oiço muita morna, coladeiras, músicas que em puto me obrigavam a ouvir e eu achava uma grande seca.
Gosta de fado?
Adoro e até já escrevi algumas letras para fado. Escrevi “O Homem do Saldanha” para o Marco Rodrigues, que ele canta com o Carlos do Carmo.
E dá tanto prazer como escrever rap?
Dá. Eu gosto e faço muita coisa que não se enquadra em Boss AC. É uma experiência a repetir.
E já experimentou cantar fado?
Já, mas ninguém ouviu. Não há vítimas!
Fonte: http://www.ionline.pt
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